segunda-feira, fevereiro 06, 2006

... e quando olhamos para trás...

Desde ontem, desde as mais impróprias horas de ontem, ando num viagem inusitada pelo meu passado...

Mas é preciso fazer o devido enquadramento de toda esta história, para que ela faça o mínimo de sentido. Assim, vamos por partes:

1) Vivi a mais extraordinária fase da minha adolescência numa capital de distrito do mais interior do nosso portugalmente... vivi extraordinariamente, sempre na sombra da minha melhor amiga, por quem senti uma amor inigualável, que admirei até (quase) à exaustão. Quis ser como ela, durante muitos anos, sem que este "querer ser como ela" tivesse algo de maldosa inveja, ou qualquer outra coisa que envolva, de alguma forma, algo de vergonhoso. E se vivia na sombra, a responsabilidade apenas a mim pode ser imputada... e só a mim, de facto, a atribuo.

2) Aos 14 anos vi-me separada da amiga, da capital de distrito, de todas as nossas loucuras vividas inconsequentemente. Sofri estupidamente. Vi-me separada de mim: a minha melhor amiga a muitos quilómetros de mim, o meu "antigo amor" (que alguém, muito sabiamente, me disse para querer apenas como antigo, e não como amor...) igualmente longe... a minha oportunidade de ser louca irreversivelmente abandonada... Sofri... juro que sofri como não pensei ser possível, por mais "pensativa e tristonha" que fosse...

3) Durante alguns anos os contactos mantiveram-se. Pareceu possível alimentar todos os amores através de cartas, e lembro-me que o meu coração saltava desenfreado cada vez que via o carteiro entrar no prédio, para distribuir o correio... Pareceu tudo possível, através das cartas, através das palavras... Afinal foi sempre através de palavras que me deixei conquistar...

4) Mas nada sobrevive ao tempo. Nada. E com o passar dos anos (e ainda bem que posso dizer anos!) as cartas começaram a rarear... e a distância que pareceu ser, por momentos, enganada, sobrepôs-se a nós, às nossas palavras, aos nossos sonhos e promessas de eternidade... E quando nos viamos na tal capital de distrito, não eramos mais do que estranhas, estranhas com ressentimentos... com estranhos ressentimentos...

5) Ontem, a propósito de nada, enquanto procurava um número de telefone há muito esquecido, fui encontrada pelas cartas que alimentaram o meu mundo de revolta durante alguns anos... li todas as cartas, sorvi todas as palavras com uma sofreguidão inesperada... deixei que as lágrimas corressem pelo meu rosto, sem vergonhas, receios ou ressentimentos... fui invadida pela saudade... e pelo desejo de saber notícias dela... E assim, quando dei por mim, estava já uma carta escrita. Uma carta inusitada... inapropriada... mas a carta que foi escrita pelas lágrimas, pelas saudades...

6) Hoje fui aos correios. Enviei a carta em correio azul. Calculo que amanhã chegue ao destino. E agora orgulho-me de mim. Porque mesmo sem resposta (porque não poderia, sequer, dar-me ao luxo de esperar uma resposta) na carta foi um pedaço de mim, um pedaço importante de mim, o pedaço que lhe pertence, que pertence a um passado que é só nosso, e ao qual ninguém poderá, nunca, ter acesso... nem mesmo nós...

Respiro de alivio...

Sem comentários: